quarta-feira, 23 de maio de 2012

V de Vingança


V for Vendetta, 2006



Camilla Guimarães
Karoline Dantas
Mauricio Cirilo
 Stephane Paula


O longa-metragem V de Vingança (V for Vendetta, EUA/Alemanha, 2006), dirigido por James McTeigue, é uma adaptação dos quadrinhos escrita por Alan Moore. A história se passa em um futuro onde o Reino Unido é governado por um regime totalitário que limita a liberdade da população.
O poder maior encontra-se nas mãos do alto Chanceler Adam Sutler, o qual foi eleito após um esquema de amendrontamento da população através de guerras e da disseminação de um vírus criado por meio de experimentos relacionados à mutação genética que matou mais de cem mil pessoas. Nesse contexto, Sutler aliado a Lewis Prothero, inicialmente magnata da indústria farmacêutica, surgem com a cura para o vírus e consequentemente a oferta de ordem e paz, desde que o povo dê em troca sua obediência. Assim, o primeiro é eleito Chanceler e o segundo se torna “a voz de Londres”, apresentador do programa mais popular da cidade que influenciava o pensamento dos cidadãos.
No filme, o Estado detinha o poder de todos os segmentos da sociedade, desde a mídia, a posse de obras de arte e até a religião. Ele impunha a ordem à população, que equivalia em tal contexto de opressão, aos seus súditos. A sociedade tinha que obedecer a um toque de recolher, era monitorada 24 horas por dia e as informações que acessavam eram todas manipuladas. Além disto, existia uma polícia secreta, os “homens-dedo”, que reprimia quaisquer condutas tidas como inadequadas. Tudo justificado como medidas de proteção.
Ao analisarmos o controle do Estado retratado, observamos o que Foucault chama de “práticas de cuidado de si”. Representado no filme de forma obsessiva e extremada, onde os indivíduos são submetidos a si mesmos, observados, controlados e cuidados. Não só os “homens-dedo”, mas cada um observava, controlava e cuidava de si mesmo e do outro (Figueiredo, 1995).
Nesse contexto, o protagonista, que atende pelo codinome V, surge como uma figura que irá combater esse Estado e seu regime totalitário. Em determinado momento, a outra protagonista, Evey, interpretada por Natalie Portman, diz “Ele era meu pai, minha mãe, meu irmão, meu amigo, ele era você, ele era eu, ele era todos nós”, fazendo alusão ao fato de que V representava toda população, à medida que lutava pelos seus direitos perdidos.
Suas primeiras ações foram explodir o Tribunal Central Criminal de Londres e invadir um canal de televisão com explosivos junto ao corpo a fim de ganhar visibilidade e mobilizar os sujeitos em prol de seus ideais. Após um discurso incentivando a reflexão das pessoas acerca de sua responsabilidade sobre a situação de submissão em que elas se encontravam, V convoca o povo a ir para frente do Parlamento inglês dali a um ano, no dia 5 de novembro. A partir desse momento, executa vários assassinatos que misturam uma vingança pessoal (ele fora utilizado como cobaia nos experimentos já citados) e sua luta por uma sociedade mais justa.
 Retornando aos ideais iluministas, vemos que eles são completamente opostos ao que há no filme, já que defendiam uma natureza humana universal, com todos os homens iguais, independentemente de sexo, raça, nacionalidade, classe e religião. Ao contrário, no caso, as minorias étnicas e os marginalizados eram utilizados como cobaias nos experimentos biológicos e torturados caso não colaborassem com o governo. Assim como havia um poder maior controlando tudo e todos.
V empreende uma saga, em busca da sua vingança, contra o Estado, onde ele acaba roubando, destruindo e matando pessoas. Tudo em prol de uma virtude maior: a justiça. Tendo em vista que no final suas ações trouxeram mais consequências positivas para a maioria, podemos falar de um utilitarismo.
Nesta perspectiva inferimos que o personagem agia por uma ética consequencialista, pois o que importava eram as consequências de sua ação, que determinam, em última análise, se essa ação é moralmente correta ou não, e definem o que conta como uma disposição virtuosa de caráter. No caso do filme, podemos dizer que o que justificou as más ações do personagem foram as consequências positivas alcançadas, tais como: a liberdade, a democracia e o direito à vida da população.
Outro momento em que podemos pensar nessa ética consequencialista é quando V arma para que Evey pense que foi capturada pelo governo quando na verdade ela está em seu porão. Durante meses V a tortura, a fim de que, assim como ele, ela liberte-se do medo que a aprisiona e torne-se alguém com coragem para realizar atitudes extremas em prol dos ideais que defende.
Seguindo nessa linha de análise, as ações de V tem como base um pensamento maquiavélico de que os fins justificam os meios.  Para falar de uma ética da vingança, se faz necessária a compreensão do termo ethos em sua definição etimológica de “morada do homem”. Algumas vezes, as ações vindicativas podem consistir somente na manutenção da ética em vigência. Seria admissível, nesse caso, conceber uma ética da vingança dentro de determinado grupo ou etnia, mantida por um ethos que acredita na “justiça feita com as próprias mãos”, por exemplo, como é o caso de V. Seria a lógica “olho por olho” implantada num sistema que justifica a vingança como resultado da violação de um estatuto social ou familiar (Guimarães, 2009).
Esse pensamento de que os fins justificam os meios também é defendido pelos repressores. Isso fica evidente na fala do chanceler de que para manter a estabilidade e o controle da sociedade, tudo vale. Só que aqui há uma inversão, pois o que está em jogo é o benefício de uma minoria dominante.
Na parte final do filme, V é assassinado após matar o chanceler e Evey opta por puxar uma alavanca que aciona um trem cheio de explosivos que destrói o Parlamento Inglês. Podemos pensar no ato de V como um altruísmo ético, visto que todas suas ações buscaram um bem maior para os outros, independente do mal que trouxeram para ele, no caso a sua morte.
A última cena do longa mostra a população se revoltando contra o Estado e indo às ruas exercer sua cidadania e buscar seus direitos, todos caminhando com a máscara utilizada por V. Porém, após o que podemos considerar como a vitória do povo, visto que o exército não se opõe mais à população, as pessoas retiram as máscaras. Este momento pode ser entendido como a afirmação da singularidade e da autonomia dos sujeitos que Foucault destaca como: “o esforço para afirmar sua liberdade e para dar a sua própria vida uma certa forma na qual poderia se reconhecer e ser reconhecido” (Menezes, 2006).
Por fim, podemos afirmar que as ações de V foram moralmente corretas se adotarmos a perspectiva de que a ação é moralmente mais correta quando segue uma regra cuja adoção se supõe produzir o bem maior para a sociedade que adota o sistema de regras a qual ela pertence. (Menezes, 2006)


Referências:

COSTA, C. Razões para o utilitarismo: uma avaliação comparativa de pontos de vista éticos. In: MENEZES, A. Ética, Bioética: Diálogos interdisciplinares. Natal: EDUFRN, 2006.

FIGUEIREDO, Luís Claudio. Foucault e Heidegger. A ética e as formas históricas do habitar (e do não habitar). Tempo Social; Rev. sociol. USP, S. paulo, 7(1-2):139-149, outubro de 1995.

GUIMARÃES, Denise Azevedo Duarte. Utopias, anacronias e distopias em v de vingança: das páginas para a tela. Intexto, Porto Alegre: UFRGS, v. 1, n. 21, p. 70-87, julho/dezembro 2009.

 

MENEZES, A. Ética e modernidade: A dimensão da autonomia em Michel Foucault. In: MENEZES, A. Ética, Bioética: Diálogos interdisciplinares. Natal: EDUFRN, 2006.

 

TEIXEIRA, Leônia Cavalcante. Ética e subjetividade: indagações em Habermas e Rorty. Estud. psicol. (Natal) [online]. 2003, vol.8, n.1, pp. 147-153.


terça-feira, 1 de maio de 2012

O Leitor




Débora Oliveira
Giselle Freire
Ianny Felinto
Rafaele dos Anjos
Raquel Queiroz
  
            O filme “O Leitor” (The Reader) lançando no ano de 2008 é uma adaptação para o cinema do livro homônimo de Bernhard Schlink, com direção de Stephen Daldry – cujo currículo conta com nada menos do que os premiados Billy Elliot e As Horas – traz no elenco uma primorosa e amadurecida Kate Winslet (Hanna Schmitz), Ralph Fiennes (Michael Berg adulto), David Kross (Michael Berg jovem) e Bruno Ganz (Professor Rohl), personagens principais e pelos quais tentaremos abordar a Ética.
            Com uma interpretação rica em sutilezas e digna do Oscar e do Globo de Ouro pela sua atuação, Kate Winslet dá vida a personagem Hanna Schmitz, apresentada como uma mulher madura que ocupa os seus dias conferindo cartões de passagem como funcionária de um transporte local. Mas um evento acaba por lhe tirar da esfera mecânica e repetitiva a que estava habituada pela entrada em sua vida do jovem Michael Berg (com metade de sua idade) a quem presta socorro em uma tarde chuvosa, em agradecimento Michael a procura, mas acaba sendo assediado por esta.  Resultando assim desse encontro um tórrido romance de verão na Alemanha durante o pós-segunda guerra.
             A relação dos amantes acaba por preencher de prazer o vazio existencial de suas vidas, seja pela descoberta do sexo por ele ou  pelas sessões de leitura por ela, condição imposta onde as historias lidas pelo jovem rapaz, a quem carinhosamente chama “garoto” vêm em primeiro lugar. A aventura vai tomando lugar na vida de ambos até chegar ao fim quando Hanna compreende que precisa permitir ao  garoto viver sua juventude, porém, será tarde demais, estará marcado pelo resto de sua vida por essa paixão, jamais superando a essa historia vivida em segredo. 
            O filme poderia terminar por aqui, levantando discussões acerca da ética e da moral centrada na relação proibida, proibição esta estabelecida socialmente pelos códigos de ética e de conduta moral da época. Hanna em nenhum momento coloca em questão se o que esta fazendo é certo ou errado, fazendo com  que o espectador indague se esta usando do sexo em beneficio de seus próprios interesses, ou se é real o sentimento, o fato é que o relacionamento se constrói nessa troca.
            Na segunda fase do filme acontece o reencontro do garoto com Hanna alguns anos depois, este agora estudante de Direito se depara com a amante de outrora ao acompanhar um julgamento referente ao Holocausto no qual Hanna era a ré juntamente com outras ex-oficiais. Acusadas pelo assassinato de centenas de mulheres judias nos campos de concentração, pois exerciam o cargo de guardas e permitiram a morte destas, primeiro por escolherem quem deveria ou não permanecer nos campos ou serem enviadas as câmaras de gás, na percepção da personagem não havia outra possibilidade, a não ser escolher as presas que seriam mandadas a morte, mesmo que dentro desta função buscasse estabelecer critérios escolhendo aquelas mais debilitadas e idosas a quem a morte já estava anunciada. Segundo, por terem deixado as presas morrerem em massa num incêndio ao se recusarem a soltá-las.
            Interessante ressaltar como o filme traz a tona uma série de questões que envolvem os códigos de conduta humana, dos valores e crenças morais e que se inserem num modo de pensar e relacionar-se delimitado num dado momento histórico e compartilhado socioculturalmente. Portanto, aborda o campo da ética, a qual se debruça sobre a reflexão de tais códigos e conjuntos de valores, tradições e costumes humanos. Ao tratar, portanto, o acontecimento histórico e polêmico que envolve o Holocausto, o filme suscita a discussão acerca de duas ordens, da moral e do legal, ambas apresentando distinção entre si, mas que estão imbricadas: as regras e leis estabelecidas seguindo os valores morais – tal relação se faz necessário para que tais leis não entrem em choque com os costumes de dada sociedade.
Tal temática que envolve a trama do filme - a contraposição entre o moral e o legal - não é nada recente na literatura ou no pensamento humano, sendo abordada por Sófocles em aproximadamente 442 a.C. em sua célebre tragédia grega intitulada “Antígona”, personagem do mito que ao desejar sepultar o corpo de Polinice, seu irmão, indo de encontro às ordens do Rei, paga com sua vida o preço de não seguir a lei estabelecida Por Creonte. Em “O Leitor”, porém, acontece o contrário com a personagem Hanna, que na verdade exerce o papel de bode expiatório dos milhares de soldados alemães que participaram do massacre de judeus e outros grupos politicamente indesejados pelo regime nazista. Interessante, como tratado no final, que havia milhares de campos de extermínio nazista na Europa, mas apenas aquelas seis mulheres estavam sendo julgadas (e poucos soldados, na vida real, foram condenados) tendo em visto a escrita e publicação de um livro de uma judia que havia sofrido juntamente com sua mãe em um desses campos e participado da “Marcha da morte”.
Tal assunto é suscitado na cena descrita abaixo (uma das mais importantes do filme) na qual o professor Rohl ao discutir um seminário que passou aos alunos de direito (incluindo Michael) tem como pano de fundo de tal trabalho justamente o julgamento dessas seis mulheres.
Rohl– As sociedades pensam que funcionam através de conceitos morais, mas não. Elas funcionam através de algo que se chama lei. Ninguém é culpado de nada só porque trabalhou em Auschwitz. 8000 pessoas trabalharam em Auschwitz. Exatamente 19 foram condenadas e somente 6 por homicídio. Para provar um homicídio tem que provar o dolo. Esta é a lei. A questão não é se foi errado, mas se foi dentro da lei. E não das leis atuais. Não. Das leis das leis da época.
Aluno – Mas isso não é simplista?
Rohl – Oh, sim. A lei é simplista. Por outro lado desconfio de que pessoas que mataram outras pessoas tem consciência de que é errado.
A seguir, no final da discussão, esse aluno diz que não ver razão de estarem discutindo aquele julgamento, dizendo: “(...) Seis mulheres julgadas por causa do livro que foi escrito. E as outras pessoas? Quantos campos existiam na Europa? (...)” E finaliza deixando a seguinte indagação: “A questão é: como você pode deixar isto acontecer?”- Essa é uma das questões cruciais que permeiam acontecimentos como o do Holocausto e que envolve vários aspectos, mas que não objetivos tratar aqui. Antes de sair o mesmo estudante diz que havia milhares de campos na Europa e a cena se finaliza. O que mais impressiona, contudo, não é a revolta do aluno diante da “impunidade” ou o seu questionamento acerca de como um masacre de atual dimensão se tornou possível, mas a própra naturalidade da persongam Hanna Schmitz diante do julgamento.
            Para Hanna sua conduta seguia um código de ética bem estabelecido e era sua obrigação cumpri-lo, sua função era guardar os presos, e é justamente pelo argumento de outro código de ética estabelecido pelas normas da lei que esta passa a ser julgada anos depois, afinal nenhum código é capaz de abarcar a realidade em sua totalidade, posto que esta é dinâmica, se antes a conduta de Hanna estava amparada agora tornara-se  crime, difícil de ser compreendido por ela como podemos perceber na sequencia das falas, quando indagada pelo juiz do porquê de não abrirem a porta durante o incêndio:
Hanna - Obviamente, pela razão óbvia. Não podíamos. Éramos guardas. Nossa missão era guardar os prisioneiros. Não podíamos deixá-los fugir.
Juiz - Entendo. Se escapassem, seriam culpadas, acusadas, ou até executadas.
Hanna - Não! Se abríssemos as portas, seria um caos. Como iríamos restaurar a ordem? Aconteceu rápido. Estava nevando, haviam bombas, haviam chamas, por toda a vila. Então começaram os gritos. Ficava pior e pior. Todos iriam correr, não podíamos deixá-los escaparem. Não podíamos. Éramos responsáveis por eles!
Juiz - Então, não sabia o que estava acontecendo?  Não sabia e fez uma escolha. Deixou todos morrerem,ao invés de arriscar deixá-los escapar.
(O leitor, 2008, 69´56´´)
            Hanna demonstra nessa fala não renunciar à identidade construída na formatação das representações a si atribuídas nos jogos de poder, não reflete, e nesse sentido não realiza uma atitude crítica para consigo. Como explícita Menezes (ano) ao discursar sobre a apropriação de Kant por Focault na reconstrução da ideia de autonomia enquanto a capacidade de refletir / pensar sobre as suas próprias ações: “Ser autônomo é traduzir a maioridade do individuo numa atitude crítica para consigo [...]”(Menezes, 2006, pg.42). Segundo este, Focault fala de um ethos individual que se estabelece sobre as condições de análise do presente, configurada no filme pela determinação do nazismo, e pelo exame crítico através da consciência de pertencimento nas relações de poder e suas formas de resistência.
            Schmitz ao ser verdadeira quanto ao seu envolvimento no SS (Schutzstaffel ou a organização paramilitar ligada do partido nazista) e nos eventos tratados no julgamento, mostra-se igualmente verdadeira em relação ao que significava pra ela deixar as presas saírem do prédio em chamas. Não era o medo da punição diante de autoridades superiores que a levou a ter essa atitude permissiva diante do acontecimento, mas uma obediência totalmente passiva. Tentaremos, desse modo, articular tal postura da personagem com  a análise de Figueiredo (1995), o qual desenvolve uma das possibilidades de aproximação entre Heidegger e Foucalt na compreensão da ética enquanto morada e habitação.
            A ética, neste sentido, estaria vinculada com a dimensão humana do si-mesmo, tal como pensado por Heidegger (1999), ou seja, para a dimensão da experiência, que se apresenta ao homem na sua condição de existência. Dessa forma, essa maneira de ser e estar no mundo irá se refletir em como vemos essa realidade que nos cerca, o que exige de nós o compromisso social com esta realidade. Assim, pensa-se o mundo vivido (tanto o nosso, como o do outro) com o olhar da diversidade, da pluralidade e complexidade que constituem a natureza humana, mas não esquecendo a singularidade que caracteriza a condição humana.
Foucault se remete à crítica empreendida por Heidegger às metafísicas do sujeito ou à crença num sujeito como fundamento auto-fundante do mundo e das representações e separa conceitualmente os domínios dos códigos morais e o dos atos ou condutas - enfatizando este segundo como decisivo para a constituição das subjetividades. Por outro lado, para este autor, tanto os códigos de prescrições e proibições como, e principalmente, as relações consigo são históricas e sujeitas a amplas variações e múltiplas combinações (Figueiredo, 1995, pag. 4).
Dessa forma, a ética enquanto morada ou habitar, como proposta por Heidegger, torna-se a figura que metaforiza a dimensão ética da existência em toda a sua complexidade e eficácia. Ora, se o homem, como ser aí, é arremessado num mundo que ele não escolheu de maneira que ele existe no sentido preciso de ser fora de si mesmo, Heidegger irá propor um espaço de separação, de recolhimento, de proteção que não encerre o existente numa clausura, mas lhe ofereça uma abertura limitada em que se reduzam os riscos dos maus encontros.  (idem, pag. 4).
Assim, voltando-se para o filme em questão e remetendo-se a dinâmica da personagem, percebe-se que Hanna não desenvolve a capacidade (pelo menos até o momento de seu julgamento) de manter e edificar sua própria morada com relativa independência, não atuando de forma reflexiva, como um sujeito ético que possui uma relação de si para consigo de certa forma autônoma diante das funções exercidas por ela e pelos outros. Foucault se refere a tal questão como “ocupar-se de si”, constituindo uma forma de vida – “não há outro fim nem outro termo além do propósito de estabelecer-se junto a si, ‘residir em si mesmo’, fazer aí sua morada” (Figueiredo cita Foucault, 1995, pag. 7).
É preciso considerar que à Hanna, como ser dasein, são colocados códigos de prescrições, papéis e proibições enquanto cidadã alemã e membro do exército nazista (embora ela tenha escolhida entrar em tal organização) de uma ideologia fascista e desse modo, deve-se considerar também tais relações que lhe são impostas e desencadeiam uma relação consigo e de morada que está influenciada por fatores de sua época e sujeitas a amplas variações e múltiplas combinações. Mas mesmo considerando tais determinações, Foucault parte de uma experiência radical de desterritorialização e propõem a ordem da estética existencial (fazer da vida uma obra de arte, sem qualquer procura de uma verdade de si, como ele sugere ao movimento gay em contraposição a qualquer ciência ou conhecimento científico da sexualidade (Figueiredo cita Foucault, 1995, p. 9).
Citando Nietzsche, Figueiredo finaliza a análise do conceito de ética enquanto morada colocando a noção de “O grande estilo”- capacidade de nos tornarmos senhores do caos que somos em nós mesmos, sem mutilar as forças em combate, forçando o caos a tomar forma (Figueiredo cita Ferry, 1995). Assim, esclarece-se que “Fazer da vida uma obra de arte seria assim suportar todas as tensões instituídas pela diferança, pelos intervalos, pelos vestígios, pelas antecipações, pelos diferendos de que somos feitos”. Interessante ressaltar que mesmo não demonstrando vergonha em assumir seus atos enquanto guarda na Segunda Guerra, Hanna prefere assumir uma culpa que não era sua à dizer publicamente que não sabia ler – e esse fato era o que realmente lhe causava vergonha, pavor. E é aí que se pode aplicar “o grande estilo”, conforme Nietzsche, de assumir e suportar suas diferenças (não saber ler, não superar as marcas deixadas pelo trabalho nos campos) e em busca de uma estética existencial, transformando esses vazios, esse caos em formas que lhe dê sentido e desse modo, ser capaz de optar por escolhas que, por vezes, vão de encontro ao que se espera socialmente.  
Vendo, agora, sobre o ponto de vista da ética utilitarista, cujo princípio consiste em escolher a ação que produz o maior bem-estar agregado ou maior prazer (bem) e/ou menos sofrimento (mal) para a maioria, a análise da situação experienciada por Hanna não foi moralmente correta, tendo em vista ser aproximadamente 300 prisioneiras o número de mortas queimadas no templo. Assim, mesmo que as guardas sofressem punição por deixar que as prisioneiras escapassem seria muito menor (supondo aqui o cálculo hedônico que consiste no balanço entre prazer e desprazer) do que a perda de 300 vidas.
Vale ressaltar, no entanto, que se tal cálculo hedônico fosse realizado levando em consideração toda a Alemanha nazista ou Terceiro Reich e se, por exemplo, os nazistas fossem defender a utilização dos prisioneiros para a evolução dos estudos científicos em prol da humanidade, torna-se difícil dizer se a utilização dos presos para testes e mesmo em trabalhos compulsivos para os alemães não seria moralmente correto de acordo com a teoria utilitarista, visto o “mecanismo” de julgamento de tal embasamento ser de certa forma simplista, utilizando de cálculos que não de adéquam, em nossa opinião, a complexidade que envolve o estar no mundo. Até mesmo levando em consideração que nem sempre preceitos legais estão a favor do bem comum - O Utilitarismo de regras (em contraposição ao Utilitarismo de Atos, de Bentham) apregoa que: “A ação moralmente (mais) correta é a que segue uma regra cuja adoção se supõe produzir o bem maior para a sociedade que adota o sistema de regras a qual ela pertence.” (Branco, pag. 30). Pensando dessa forma, não seria condenável a ação dos nazistas visto que se calcava em valores aceitos na sociedade da época. Vale considerar, no entanto, que mesmo defensores de tal ética, admitem a limitação dos princípios da ética utilitarista em alguns casos, como nos vários aspetos que envolveram o holocausto.
Por último, conhecendo as teorias éticas, tem-se na ética relativista aquela que mais se assemelha com o que a personagem Hanna acredita, uma vez que se percebe que ao mesmo tempo que ela carrega o peso de sua dura decisão no passado (em alguns momentos, como quando ela vai até a igreja onde ocorreu o incêndio e chora, percebe-se que mesmo não falando no assunto, mais carrega as marcas deixadas pelo período de guerra) ela no julgamento parece ainda não compreender que ainda lhe restava a decisão de abrir os portões, mesmo que isso fosse de encontro ao instituído e é nesse lugar que a personagem permanece – o lugar do sujeito enquanto operador de ações que são moralmente corretas no momento em que os padrões de aceitação para o julgamento moral dependem da cultura ou grupo social inserido. Tal posicionamento tem por princípio que a diversidade de códigos morais que existe hoje, assim como através da história, indica que não há uma única moralidade que governe todos os seres humanos. Assim o relativismo parece eliminar a crítica de qualquer um que esteja fora da minha própria cultura ou subcultura e por essa razão as dificuldades com o relativismo estimularam a busca de uma teoria do raciocínio moral que seja universal.
            Assim, podemos analisar que Hanna deixou-se subjugar pelas relações de poder existentes, e assujeitando-se anula sua subjetividade. A problematização ética tida enquanto atitude de modernidade, ou seja, enquanto modo de se relacionar com a atualidade, compreende a esfera da subjetividade /singularidade do sujeito, e sua constituição histórica. Nesse âmbito sua forma de conduta deveria ser pautada por uma estética da existência
“[...] atitude do sujeito histórico de tomar a si mesmo como objeto de elaboração de si próprio enquanto uma pratica refletida da liberdade, nos limites do seu próprio contexto ou do horizonte de experimentação do individuo no campo atual das experiências possíveis” (Menezes, 2006, pg.44)
            Conduta que podemos vislumbrar em sua atitude de escolher os mais incapacitados para a morte, isto era no momento o possível a ser feito, no entanto, não mantém a mesma congruência ao não compreender após tantos anos as outras possibilidades que não a chacina ocasionada pelo incêndio. Afinal, entende-se a compreensão ética como o “princípio de uma critica e de uma criação permanente de nós mesmos na nossa autonomia” (FOUCAULT, 1994, pg 687 apud MENEZES, 2006, pg.44).  
            Ainda discorrendo acerca de tal compreensão de ética, o texto traz “[...] a ética do individuo corresponde à conduta do fazer-se objeto de si mesmo no âmbito de produção da autonomia enquanto construção da própria vida.” (Menezes, 2006, pg.45) criando sua própria existência no contexto das relações de poder, “reinvenção constante do modo de ser, como criação de uma forma singular de vida, estruturada a partir da reflexão critica da conjuntura, experimentada no nível das praticas e condutas, enquanto modo possível no contexto histórico-social”(Menezes, 2006,  pg.46)    
            Hanna acaba sendo condenada - a única condenada à prisão perpétua - pela autoria do crime, pois foi alegado que um documento descrevendo os acontecimentos e decisões relativas ao dia do incêndio teria sido escrito por Hanna, no entanto (para quem ainda não havia captado acontece aqui a grande revelação) esta era analfabeta, jamais poderia ter escrito tal documento, informação que poderia mudar o veredicto do juiz, mas que foi subtraída pelos únicos que detinham essa informação, Hanna e Michael. Hanna esconde seu analfabetismo por orgulho ou vergonha e o Garoto sente-se impotente, pois respeita sua decisão de esconder, convencido pela exposição do professor Rohl “ – O que sentimos não é importante. É totalmente irrelevante. A questão é o que fazemos.” (O leitor, 2008, 75´05´´) Colocando em evidencia assim a ética deontológica em detrimento de uma ética da virtude
            Após cumprir muitos anos de sua pena, Michael resolve estabelecer contato com Hanna enviando a gravação de fitas em que lê livros. Hanna, já debilitada pela idade então renasce para vida e pela primeira vez busca uma mudança, aprender a ler. Portanto no fim de sua vida mantém uma postura ética, segundo Foucault disposta a mudar a si e seu pensamentos e sem temer as mudanças, liberta-se
“Na ontologia critica do presente, mais que cuidar de si a vocação é se ultrapassar. Temos que nos recusar a ser o que somos, não podemos aceitar o que foi feito de nós, vamos nos inventar e fazer da nossa vida uma existência livre e bela, esse é o lema do último Foucault”( Branco, 2006, pg. 56)
            Com sua morte, Michael resolve também libertar-se do passado, começando por compartilhar com a filha o segredo a tanto tempo guardado, afinal, segundo Foucault, é apenas pelo diagnostico do presente que podemos traçar perspectivas de futuro, transformando a historia.

REFERÊNCIAS

Branco, G. C. (2006). Atualidade e Liberdade em Michel Foucault. In: A. B. Menezes, Ética , Bioética: diálogos interdisciplinares. Natal: EDUFRN.
Costa, C. F. (2006). Razões para o utilitarismo: uma avaliação comparativa dos pontos de vista éticos. In: A. B. Menezes, Ética , Bioética: diálogos interdisciplinares. Natal: EDUFRN.
 Figueiredo, L. C. (1995). Foucault e Heidegger: a ética e as formas históricas do habitar (e do não habitar). Tempo social; Rev. sociol. USP, São Paulo, 7(1-2), 136-149.
Furrow, D. (2007). Ética: conceitos-chave em filosofia. Trad. Fernando José R. da Rocha. Porto Alegre: Artmed, PP. 44-49.
Menezes, A. B. (2006). Ética e modernidade: a dimensão da autonomia em Michel Foucault. In: A. B. Menezes, Ética, Bioética: diálogos interdisciplinares. Natal: EDUFRN.

Batman: O cavaleiro das trevas


The Dark Knight




Arthemis Nunes
Eleni Araújo
Lorena Macedo
Shirllane Nunes

Impactante, reflexivo, atual e, porque não... perturbador? Sob a direção de Christopher Nolan, Batman – Cavaleiro das Trevas, lançado em 2008, provou seu sucesso nas bilheterias dos cinemas, superando as expectativas dos telespectadores ao apresentar um ritmo alucinante, com cenas de tirar o fôlego. A luta entre aqueles que tentam manter a ordem e um “mensageiro do caos”, que só quer ver o circo pegar fogo, cativou os milhares de fãs e rendeu dois Oscars à produção. Enquanto Batman caracteriza-se por ser sério, obscuro, silencioso, controlado e lógico, vemos um Coringa que é o oposto: alegre, colorido, barulhento, impulsivo e aleatório.
O enredo passa-se em um momento em que os criminosos de Gotham City estão temendo a presença, há aproximadamente dois anos, de Batman (Christian Bale). O tenente James Gordon (Gary Oldman) e o promotor público Harvey Dent (Aaron Eckhart) lutam contra o crime organizado com a ajuda do justiceiro. Em função dessa ofensiva, os chefes do crime se rendem a proposta feita pelo Coringa (Heath Ledger) e veem nele a única alternativa para combater o Homem-Morcego. Nesse entrelace de relações, podemos observar diversos comportamentos que nos levam a refletir até que ponto nossos atos são e devem ser pautados por normas e regras e, se a transgressão a estas em nome do que é melhor para todos configura-se como uma possibilidade.
O filme permite algumas sensações angustiantes. Dilemas são postos, escolhas devem ser feitas, as vidas de pessoas são interrompidas e ainda há de se lidar com os “jogos” que o Coringa deseja brincar. Além da angústia (que pode ser resultante) ao ver o filme, outros sentimentos e reflexões também se fazem presentes, pois, em meio a tantas cenas e situações problematizadoras, indagações são suscitadas, tal como “uma boa intenção, leva a uma boa ação que necessariamente resulta em uma boa consequência?”.
Pode-se pensar, a partir do questionamento supracitado, nas diferentes abordagens éticas e, consequentemente, nas formas particulares, e por vezes opositoras, de cada concepção abordar um mesmo fenômeno. Destarte, no filme comentado é perceptível que uma mesma ação, como, por exemplo, o fato de Bruce Wayne se tornar um sujeito mascarado lutando contra o crime organizado pode ser visto de formas diversas. Desse modo, tal ação pode ser avaliada de forma “boa”, pautada na intenção de proteger a cidade, guiado pelo senso de justiça (éticas da virtude) ou como uma “má” ação, ressaltando-se que há violação de regras morais para que esse combate ao crime ocorra (éticas deontológicas).
Ademais, são notáveis no decorrer da história: conflitos, opiniões divergentes e reflexões acerca dos atos que devem ser feitos pensando na consequência para o ator social que a realiza, bem como para a população da cidade. Nesse sentido, é interessante uma discussão acerca do utilitarismo: visando o maior bem e/ou menor sofrimento para a maioria dos sujeitos envolvidos. Batman e Lucius Fox se veem diante de um impasse ético: enquanto Batman pretende utilizar o sistema de sonar criado por Fox como um gerador- receptor de alta frequência para mapear todos os sinais de celulares da cidade e, com isso tentar encontrar o Coringa, Fox considera isso antiético e perigoso, mas, no entanto, o faz e diz que isso será sua demissão. “Espionar 30 milhões de pessoas”, como diz Fox, não fazia parte de suas funções, mesmo que esse fosse o preço a pagar para salvar Gothan.  Vemos aí também um Batman que não se apresenta mais como um herói essencialmente bom, mas um herói que está cheio de conflitos pelas condições em que é colocado.
Em tal contexto, cada personagem mostrou uma forma de agir relacionada à sua própria conduta, princípios e crenças no que é o “melhor”, mostrando claramente uma possível ética utilitarista por parte do Batman. Além disso, a partir da mesma cena pode ser apresentada também a ideia de autonomia, observando-se que cada um agiu criticamente ao tentar exercer sua autonomia, e mesmo que Fox tenha feito contra sua vontade o que Batman pediu, ele mesmo assim escolheu fazer, de modo que exerceu sua autonomia dentro dessa relação de poder.
A autonomia tem fundamental importância no quadro de problemáticas éticas na contemporaneidade e, mais diretamente relacionada ao sujeito, se encontraria no âmbito da crítica, que por sua vez é condição de possibilidade de criação da própria existência dentro do campo das relações de poder. Como condição de avaliação da ação moral, delimita várias esferas de problematização da liberdade e do livre arbítrio do indivíduo, em aspectos políticos e sociais. Por vezes, Batman tem a oportunidade de matar o Coringa, mas não o faz, sendo inclusive questionado por este. Dentro de seu campo de problematização e ação moral, a opção de não matar uma vida é maior que a possibilidade imanente de várias outras serem mortas.
Fala-se, assim, em uma atitude de modernidade ao fazer um diagnóstico do momento e seu contexto, em um exercício de autonomia diante das múltiplas forças sociais. Batman, em seu esconderijo, após ser ferido em uma luta contra uns bandidos, é alertado por Alfred: “Sempre que você dá os pontos, é uma carnificina”, ao que responde: “É. Assim, eu aprendo com os meus erros”. Batman reflete sobre si e suas ações e percebe, através dos seus erros, o que deve ou não voltar a fazer. Nesse sentido, a ética do indivíduo corresponderia a uma atitude crítica do fazer-se objeto para si mesmo no que diz respeito à produção de autonomia enquanto construção da própria vida.
Outros impasses apresentados no filme nos evoca a mais questionamentos, desta vez, relacionados à liberdade, que além de ser um conceito amplo e complexo, é polêmico. Entende-se, para Foucault, que as leis e normas se dão como efeitos das práticas de liberdade, uma vez que são a partir destas novas regras, como modos de ser, experimentar e de agir, que elas serão constituídas.
Detenhamo-nos no Coringa, um personagem marcado por uma história dramática, onde em seu passado vivencia cenas de violência profundamente marcantes, a ponto de produzir nele a incorporação de um personagem o qual é marca literal das cicatrizes em seu rosto, escondidas por maquiagem. Marca de suas vivências, símbolo de quem é: ‘monstro’ e / ou criatura que aterroriza os outros por seus atos que acabam por se vincular às suas características físicas, símbolo construído também por ele e pelas emoções evocadas nos outros.
Considerando a condição de liberdade à existência humana, é legítimo que ele tenha realizado todas aquelas ações? Se existe aí implicado um posicionamento diante do mundo que se colocou à sua frente, a não aceitação de normas impostas, combatendo as regras e todas as fontes que pretendem governar condutas, é legítimo que tenha feito tudo o que fizera?  Longe de qualquer apontamento sobre o que seja certo ou errado, o fato é que ao que parece, o Coringa se fez escravo de seus desejos, ou seja, em sua suposta liberdade, passou longe de estar de fato liberto. Pois, como se pode estar realmente livre a mercê da dominação de seus impulsos?
Para Foucault, a liberdade tem dois eixos principais: não deixar-se dominar pelo outro e dessa forma, não exercer domínio sobre o outro. É o cuidado que devemos ter conosco para não tomar o outro como simples objeto de nossas ações, bem como para não ficar a mercê dele. O que se pretende é o governo dos apetites, de modo a assegurar para si o domínio que permitirá administrar bem a relação consigo e com o outro. O Coringa não tem domínio sobre si e, consequentemente, domina também o outro.
Várias outras questões da dimensão ética poderiam ser suscitadas no decorrer da trama, sempre nos levando ao apontamento apresentado pelo Coringa: “Sabe, a moral deles... A honra... É uma piada de mau gosto. Esquecem ao primeiro sinal de problema. As pessoas são tão boas quanto o mundo permite”. Então, por que não assistir e se (des)encantar com o filme, buscando compreender suas ações, lógicas e reflexões?

REFERÊNCIAS:

Costa, C.F. (2006). Razões para o utilitarismo: uma avaliação comparativa dos pontos de vista éticos. In Menezes, A.B.N.T., Ética, Bioética: diálogos interdisciplinares (pp. 15-38). Natal: EDUFRN.
Menezes, A. (2006). Ética e modernidade: A dimensão da autonomia em Michel Foucault. In: Menezes, A. Ética, Bioética: Diálogos interdisciplinares. Natal: EDUFRN.
RODRIGUES, C.; TEDESCO, S. Por uma perspectiva ética das práticas de cuidado contemporâneo. In: Ética e Subjetividade Novos impasses no contemporâneo. TEDESCO, S.; NASCIMENTO, M. L. (Orgs.). Editora Sulina.

Agora




Bárbara Gabriele
Cíntia Asfora
Dandara Morais
Daniele Paulino
Dayany Ribeiro


Agora (2009), produção espanhola dirigida por Alejandro Amenábar, retrata a Alexandria do final do século IV, a segunda cidade mais populosa do Império Romano. Alexandria pulsava arte e cultura, cidade cosmopolita, acolhedora de judeus, romanos, egípcios, escravos e livres. Um verdadeiro caldeirão cultural, atravessado por elementos das culturas dos povos que constituíam um ethos, representado pelas pessoas, falas, gestos, espaços, narrativas, rituais que configuravam o funcionamento da cidade e as formas de se comportar e pensar dos seus cidadãos.
A história se centra em Hipátia (Rachel Weisz), filósofa, matemática e astrônoma, professora na prestigiosa escola da cidade; Davus (Max Minghella), seu escravo, apaixonado por ela; e Orestes (Oscar Isaac), seu aluno e futuro prefeito da cidade. Inicialmente, vemos uma Alexandria marcada por elementos da cultura greco-romana. Acompanhando estes personagens, assistimos à destruição da escola e biblioteca de Alexandria, símbolos do conhecimento científico da época, marcando a ascensão do cristianismo e o surgimento de uma Alexandria cristã, na qual a antes respeitada estudiosa Hipátia é, agora, perseguida enquanto acusada de ateísmo e bruxaria; Davus, não mais escravo, se torna membro de um grupo de fanáticos cristãos, os parabolanos; e Orestes tem sua posição ameaçada pelo bispo, Cirilo (Sami Samir), que vê em sua relação com a filósofa o ponto fraco de que precisa para derrubá-lo.
Nesse contexto de transformações e de embates religiosos e políticos, a mensagem cristã que apregoava igualdade entre os homens, ia de encontro à divisão de classes que colocava de um lado o senhor, homem livre, e de outro, o escravo, conseguindo cada vez mais adeptos seja pela pregação de uma mensagem “libertadora”, seja pela imposição ou violência, representada pelos massacres protagonizados diversas vezes pelos monges parabolanos contra judeus e pagãos.
O momento que marca a iniciação de Davus ao cristianismo, mostra o escravo cercado por mendigos, recebendo o convite de Ammonius (Ashraf Barhom) para distribuir aos pobres os pães que eram de seu senhor. Sabendo que o valor seria descontado de seu salário, este se mostra receoso. No entanto, o parabolano o faz refletir sobre o real valor do dinheiro frente à situação daquelas pessoas – e Davus, em uma atitude de altruísmo ético, distribui os pães aos pobres, a despeito das consequências negativas que sofreria.
Interessante é perceber que, apesar dos preceitos cristãos de paz, amor, respeito entre os homens e a própria máxima "não matarás", a morte de algumas pessoas em nome da propagação e consolidação desta religião parecia justificável naquele contexto, representando, na visão dos monges parabolanos, um bem maior para toda a cidade. Embora seja possível questionar se o sofrimento causado para a maioria não foi maior que o prazer e benefícios alcançados.
No cenário que se segue à destruição de um dos espaços de resistência à expansão da fé cristã, a biblioteca de Alexandria, Hipátia, convicta em seus princípios, negava-se a ser convertida ao cristianismo, preferindo se apoiar em seu ofício e paixão. Distanciada dos embates e discussões religiosas do mundo lá fora, recolhida em sua “habitação”, ela pôde expandir seus conhecimentos científicos e refletir filosoficamente sobre a situação na qual Alexandria se encontrava. Contudo, a posição assumida corajosamente por ela, poderia custar caro. Hipátia, acusada de ateísmo e bruxaria, corria risco de vida. Sua proteção vinha do prefeito da cidade, apaixonado por ela, Orestes, seu ex-aluno e adepto ao cristianismo, que não poderia mais protegê-la caso ela não se convertesse à religião. Após pesar os malefícios (não negar os seus princípios e morrer) e os benefícios (abrir mão de suas convicções e viver) que poderiam decorrer dessa situação, no cálculo hedônico que realizou, Hipátia optou por sua filosofia, aceitando que a morte era uma melhor saída a viver negando o que acreditava.
O amor desmedido de Orestes por sua mestra o fez negar sua fé ao não se ajoelhar perante o livro sagrado cristão, a Bíblia, frente a toda a cidade. No entanto, ao voltar para seu palácio, Sinésio (Rupert Evans), amigo de Orestes, ex-aluno da filósofa e agora bispo da igreja, questiona o prefeito, perguntando à quantas mulheres ele serve. Nesse momento, através de suas indagações, Sinésio o faz refletir se estaria disposto a negar tudo o que acreditava, seus preceitos religiosos, para servir e morrer por uma mulher. Orestes cai em si e, reavaliando seu cálculo hedônico (abrir mão da fé cristã por causa de uma mulher e incitar os cristãos que o apoiavam, o que causaria um mal para ele e para a cidade), o prefeito decide que a ação mais correta é permanecer fiel aos preceitos religiosos, uma vez que isto representaria um maior bem para a maioria.
Ademais, uma interessante correlação que o filme permite é com a doutrina exposta pelo filósofo Friedrich Nietzsche em seu livro a Genealogia da Moral, no qual o autor faz uma distinção muitíssimo interessante entre a Moral de Escravos e a Moral dos Senhores. Para esta distinção ficar mais clara, é importante dizer que o autor tem uma profunda rejeição ao cristianismo, ao qual ao longo do livro ele associa a uma moral de escravos. Oportuno perceber que no filme, o cristianismo é justamente uma religião que se espalha entre as classes mais baixas, ou seja, os escravos, com quem Nietszche relaciona a moral cristã.
Para o autor, a moral dos senhores é um moral em que a vontade de poder estaria mais forte, uma vez que esta moral seria uma afirmação de si mesma, orgulhosa, ao passo que a moral dos escravos seria sempre uma força reativa, na qual sempre haveria uma parcela de ressentimento. Para Nietszche, a moral dos escravos sempre diz não ao que não é seu, o que se reflete no filme quando ao invadirem a biblioteca, estes a destroem, por ser um recanto de conhecimentos “pagãos.”  
Por fim, Alexandria convida a reflexão e ao questionamento diante de um mundo cercado por tantas formas de intolerâncias. Sua temática nunca foi tão atual, e demonstra a importância de habitar e pensar criticamente sobre o mundo a fim de nortearmos nossas ações e posicionamentos diante de uma sociedade frenética e tantas vezes insana.


REFERÊNCIAS

Costa, C.F. (2006). Razões para o utilitarismo: uma avaliação comparativa dos pontos de vista éticos. In Menezes, A.B.N.T., Ética, Bioética: diálogos interdisciplinares (pp. 15-38). Natal: EDUFRN.
Figueiredo, L.C. (1995). Foucault e Heidegger. A ética e as formas históricas do habitar. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 7(1-2): 139-149.
Nietzsche, F. W. (S.N.). A Genealogia da Moral. Tradução de Antônio Carlos Braga. São Paulo, Editora Escala.
Lefranc, J. Compreender Nietzsche. (2005). Petrópolis: Vozes.