A ética daqueles que não amavam as mulheres
Alessandra Cavalcanti
Allana Carvalho
Amanda Guerra
Nayara Soares
Renata Cibelli
Thamires Pinto
Impactante é uma palavra que nos remete a
acontecimentos que nos comovem e que, de certa forma, mobilizam a determinadas
ações, e é assim que essa esplendorosa obra reflete em cada olhar e ouvido
atento à trama. Os Homens que Não Amavam as Mulheres (título original: Man som
hatar kvinnor) é a primeira obra da trilogia Millenium, escrita pelo ativista
político e jornalista Stieg Larsson. O trajeto de vida do autor da trilogia é
marcado pela sua atuação na extrema esquerda e pelas inúmeras denuncias
realizadas a grupos e organizações de cunho neofacistas e racistas. Há aqui uma
curiosidade sobre a vida do autor: aos 15 anos, ele presenciou um estupro
coletivo, realizado pelos seus colegas. Essa situação marcante e traumática
para Larsson resultou na sua preocupação em defender os direitos das mulheres e
na sua aliança com a causa feminista. Em suas obras, a temática da violência
sexual se faz fortemente presente, através de cenas cruas e duras.
Nos romances da trilogia Millenium, escritos ao longo
de alguns anos, o autor retrata as histórias de forma original e envolvente,
conduzindo o leitor a reflexões acerca da vida contemporânea, das relações
estabelecidas entre os indivíduos, da violência sexual contra as mulheres, dos
movimentos nazistas, da volatilidade do mercado financeiro, bem como do uso de
poderes nas relações. Nesse sentido, Larsson, pretende chamar atenção a cada
letra e sentença construída, a ponto de desencadear uma série de emoções no
leitor, uma miscelânea entre mistério e revelação, amor e ódio. Pena que, em
decorrência de um enfarte fulminante, o jornalista não pôde desfrutar do sucesso
de sua obra, aclamado pelos críticos por sua maestria em prender o leitor do
início ao fim.
O filme, baseado na obra de Stieg Larsson, é um
reflexo de como uma construção literária pode resultar num longa-metragem
aclamado pela crítica internacional. Os Homens que Não Amavam as Mulheres foi
dirigido pelo cineasta dinamarquês Niels Arden Oplev, produzido em 2009 e bateu
recordes nas bilheterias europeias. O filme contou com um elenco até então
pouco conhecido nos longas hollywoodianos, mas que mostrou através da sua
história envolvente como reproduzir os mesmos efeitos em uma língua
estrangeira. Há, durante o percurso da trama, ritmo e montagem para que o
filme possa funcionar, não somente com ligações entre contextos e diferentes
núcleos, mas flashbacks ou insights que pudesse remeter ao espectador um
entendimento mais apurado da história, sem perder a curva dramática e o clímax
nesse enigma de portas fechadas.
O desenrolar da trama é tecido por três histórias que
se cruzam. O filme já começa nos convidando a prestar atenção à sequência de
fatos soltos que apontam para um primeiro momento - a crise de credibilidade da
Millenium, uma revista conhecida por reportagens de escândalos da alta finança
que tinha em sua equipe técnica Mikael Blomkvist. Este impetuoso jornalista,
interpretado pelo ator sueco Michael Nyqvist, realizou uma denúncia
contra um poderoso empresário sueco, mas mal sabia ele que sua “boa” ação seria
tida por fraudulenta e comprometeria o seu futuro e o da revista. Por esta
denúncia, o jornalista é condenado a três meses de reclusão, os quais seriam
cumpridos após um semestre em liberdade.
Diante das acusações e de sua grande exposição à
mídia, Mikael se torna alvo de observação de Henrik Vanger (Sven-Bertil Taube),
um empresário aposentado que costumava gerir a empresa familiar Vanger
Corporation, até desmoronar emocionalmente diante do desaparecimento de sua
sobrinha, Harriet Vanger. Impressionado com as informações que Mikael havia
obtido sobre o empresário denunciado e sabendo da veracidade desses dados,
Henrik contrata uma empresa especializada em investigações para obter
informações sobre o jornalista.
Eis que surge, juntamente com a intrigante Lisbeth
Salander, a segunda engrenagem do filme - a investigação do desaparecimento de Harriet.
Lisbeth é uma talentosa investigadora interpretada pela atriz sueca Noomi
Rapace. Uma personagem esquisita, cheia de mistérios, dona de um passado
obscuro e vista por muitos como louca, as vivências e atitudes de Lisbeth
proporcionam grandes emoções aos espectadores. Medo, angústia, empatia, raiva,
indignação, enfim, são sensações que tocam o âmago daqueles que almejam
justiça.
A partir dos dados minuciosamente levantados, Henrik
obteve informações suficientes que o levaram a contratar o jornalista, a troco
da veracidade das evidências de corrupção do empresário acusado por Mikael, e
confiou a ele a missão de finalmente solucionar o mistério do desaparecimento
de Harriet. Descobrir o que havia acontecido à sobrinha tinha se tornado sua
obsessão por quarenta anos - tempo em que Henrik tentava solucionar esse
mistério. Porém, a única pista que tinha (os quadros com as flores que recebia
todos os anos em seu aniversário - presente que Harriet costumava dar-lhe) não
era suficiente para que algo fosse desvendado. A história do desaparecimento de
Harriet é a terceira engrenagem que move a complexa trama.
Sua falta era povoada por cegas especulações e por
acusações familiares: o que houve com Harriet? Havia sido assassinada? Quem
seria o autor desse crime? Seria ela ou seu assassino responsável pelo envio
anual de quadros com flores a Henrik? O histórico de uma família
desarmoniosa e egoísta acaba por envolver cada membro na sombra da dúvida.
Diante de tantos fatos, é possível questionar: afinal,
o que está em jogo na trama? Existem inúmeros níveis de análise, mas, em
instância geral, o filme leva à reflexão acerca do mote das relações humanas,
em que base elas estão sustentadas. E, ainda, se é ético, e para quem, a forma
que estas se estabelecem.
É intrigante perceber que o destaque das personagens
protagonistas dos três momentos demarcados se faz no uso que delas se é feito.
Seja para ratificar uma ideologia nazista, seja por prazer pessoal, seja com
fins investigativos. Mas, afinal, se são os interesses que estão em primazia,
resta às pessoas a condição de servir de meios para alcançá-los. De acordo com
o princípio dos fins kantiano, nas ações em que não tratamos as pessoas
ou nós mesmos também como fins em si mesmos, mas só como meios, estamos sendo
moralmente incorretos (Menezes, 2006). Com a necessária ressalva de que isso se
dissolve caso haja consentimento das partes, porque há a possibilidade de as
partes também se beneficiarem da condição em que estão, como através de
recompensas que lhe são interessantes (Menezes, 2006). Entre Henrik e Mikael há
claramente um interesse mútuo: Henrik deseja que Mikael solucione o
desaparecimento de Harriet e Mikael deseja os documentos que incriminam o
empresário que outrora denunciára. E, afinal, há algum motivo que nos leve a
nos relacionarmos com os outros que não envolva, em última análise, um
benefício próprio?
Por outro lado, ao tomarmos a situação de Lisbeth,
que, por um momento, se vê forçada a se submeter sexualmente em troca do que
seria seu por direito, fica claro que, para seu curador, ela nada mais é que
uma possível fonte de afirmação do seu poder e de sua autoridade, o que fica
evidente na forma violenta como ele se aproveita da garota para satisfazer-se
sexualmente. Para além do princípio dos fins, observa-se que esse caso
abarca também o Egoísmo Ético, que justifica a obtenção de prazer do curador,
não importando o sofrimento alheio decorrente da prática de abuso sexual
(Menezes, 2006).
A partir dos mesmos princípios éticos, viveu Harriet.
Vítima de abuso sexual por parte do pai e do irmão, a personagem era também
tida como meio para o prazer do outro e, um dia, acaba por matar seu pai. Da
mesma forma, Lisbeth, apesar do sofrimento, transforma o seu contexto anterior
de submissão e sujeição a partir do momento em que vai à casa de seu curador,
causa-lhe sofrimento e deixa-lhe uma marca de forma a, muito provavelmente,
impedir que casos como o que vivera se repetissem. Sob a ótica do princípio
geral do utilitarismo hedonista, tem-se que a ação moralmente mais correta é
aquela que se supõe produzir um maior bem e/ou menor mal para a maioria
(Menezes, 2006). Sendo assim, Lisbeth agiu eticamente a partir do momento em
que preveniu que outras mulheres sofressem como ela sofreu nas mãos do tutor,
embora tenha violentado-o.
Mas, matar, convenhamos, não é convencionalmente
entendido como moralmente correto. Inclusive, fingir falsa identidade também
não o é, mas Harriet e Lisbeth não deixam de fazê-lo, e isso gera um bem, ora
pessoal, ora coletivo. São, por isso, ações moralmente incorretas?
A atual liquidez da vida e da sociedade discutida por
Bauman, muito provavelmente, desviaria Kant, se este vivesse nestes tempos
modernos, da proposta de um agir ético baseado em ditames gerais. A começar
pela denominação de seu princípio, que demarca a centralidade do que é,
reforçadamente, “imperativo” e “categórico”. Sem sequer nos determos na
proposta da universalização, se vivesse agora, esse filósofo, talvez, se
surpreendesse com uma violação já muitas vezes tida por necessária de seu princípio
dos fins. São muitos interesses, muitas pretensões, muita insaciedade, para
pouco tempo para investimento afetivo e preocupação com o outro; e parece não
fazer sentido que, diante da possibilidade de se chegar onde que se quer, seja
preciso circular por entre as pessoas e com elas, dificultando os caminhos,
quando se é bem mais prático e rápido andar sobre elas (Menezes, 2006).
Mas, para além de um egoísmo, Harriet e Lisbeth passam
por momentos singulares e, diante de condições bem próprias, decidem pelas
ações que lhes são possíveis. Como habitar uma morada que havia sido corrompida
por um pai perverso? Até onde os costumes ditam aquilo que tem que ser feito?
Teria Martin outra escolha? Para Foucault, a dimensão ética implica fundamentalmente
os humanos em relações reflexivas, e assim sendo, instauram-se aqui
relações de cada um consigo mesmo, sendo estas analisadas em quatro aspectos. O
primeiro, a substância ética, é caracterizado pela parte de si que é
almejada pelos ditames morais, ou seja, o que é de nós esperado frente a uma
moral específica. A partir deste requisito compreende-se o segundo aspecto das
relações reflexivas que é entendido como modo de assujeitamento do indivído,
que se dá a partir do modo com que os indivíduos reconhecem a força desses
ditames. O terceiro aspecto vai dizer respeito aos meios acionados para
controle dos desejos e transformações desejadas pelo sujeito. Por fim, o quarto
aspecto direciona a teologia de todo esse processo reflexivo, que são os ideais
normalizadores e norteadores de todos os esforços de transformação, definindo o
tipo de homem perseguido nos processos de subjetivação. Vale dizer que estes
quatro aspectos não são meros reflexos passivos das experiências humanas: eles,
conjuntamente articulados aos códigos, possuem uma eficácia constitutiva, que
se traduz na produção de subjetividade. Assim, cabe ao sujeito, a escolha, o
reinventar, o movimento para habitar a morada de forma reflexiva, condizente
com os códigos e com os preceitos de sua existência. A partir desse
posicionamento concebe-se que Martin teria sim outra escolha, que os
ensinamentos do seu pai não eram absolutos. Por mais que produzam
assujeitamento, todos os costumes e atos são passíveis de reflexão e de
produção de novos movimentos e subjetividade capazes de transformar uma
vivência negativa em uma retomada com grande estilo - no sentido
nietzscheano. E este é o movimento visto pelas personagens de Harriet e
Lizbeth, a quebra de um ciclo para dar possibilidades a outros.
Indo além de ditames e de interesses individuais, e
partindo de um ponto de vista utilitarista, nada mais ratificador da moral do
que investir numa investigação que é o princípio do fim de uma série de ações
preconceituosos, indignos e fatais, praticados contra um número de mulheres que
cada vez mais se somava. Sob esse mesmo pretexto, o de resultar em maior bem ou
em menor mal, mata-se, deixa-se morrer, utiliza-se de falsa identidade. E não
há dúvidas das consequências das ações: desmascara-se o empresário fraudulento
e o abusador, cessa-se sofrimentos e é feita justiça. São essas as ações que
despertam no telespectador sentimentos de efusividade, frente a morte e ao
desvendamento daqueles que oprimiam. São, essas consequências,
convencionalmente bem vistas e bem quistas. Mas o que garante que o disparador
da ação não fora um sofrimento ou insatisfação eminentemente pessoal, cujo
efeito acabou por ultrapassar o esperado? E se o que estava em jogo era, na
verdade, um Egoísmo Ético? Os bons resultados ainda se justificam, mesmo se
forem “acidentais”? Aqui, o filme nos envolve numa reflexão contrassensual
sobre ações individuais que resultam no bem coletivos. E o mais surpreendente é
que, nesse contexto, a trama nos envolve a ponto de nos fazer torcer para que
ações moralmente incorretas se cumpram, como a morte de alguns (abusadores
sexuais), ou que pessoas passem despercebidas com identidades falsas.
Certamente, a discussão desse filme não se esgota
aqui, pois existem diversos aspectos singulares que podem ser analisados sob
óticas distintas. Vale a pena conferir o filme (e, quem sabe, o livro), sentir
o impacto que ele provoca, e permitir-se refletir sobre o que está
verdadeiramente em jogo naquela trama, de acordo com a leitura de cada
telespectador. E, a partir disso, permitir-se também refletir sobre o que
permeia a trama da vida e relações cotidianas, diante da leitura que se faz
delas.
Referências Bibliográficas
Costa, C. F. Razões para o utilitarismo: uma avaliação
comparativa dos pontos de vista éticos. MENEZES, A.(org.): Ética, bioética:
diálogos interdisciplinares. Natal: EDUFRN, 2006. (Menezes, 2006)
FIGUEIREDO, Luís Claudio. Foucault e Heidegger. A
ética e as formas históricas do habitar. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S.
Paulo, 7(1-2): 139-149, outubro de 1995.(Figueiredo, 1995)
Menezes, A. B. N. T. Ética e modernidade: a dimensão
da autonomia em Michel Foucault. MENEZES, A.(org.): Ética, bioética: diálogos
interdisciplinares. Natal: EDUFRN, 2006.(Menezes, 2006)