segunda-feira, 11 de junho de 2012

Os Homens que Não Amavam as Mulheres


A ética daqueles que não amavam as mulheres


Alessandra Cavalcanti
Allana Carvalho
Amanda Guerra
Nayara Soares
Renata Cibelli
Thamires Pinto


Impactante é uma palavra que nos remete a acontecimentos que nos comovem e que, de certa forma, mobilizam a determinadas ações, e é assim que essa esplendorosa obra reflete em cada olhar e ouvido atento à trama. Os Homens que Não Amavam as Mulheres (título original: Man som hatar kvinnor) é a primeira obra da trilogia Millenium, escrita pelo ativista político e jornalista Stieg Larsson. O trajeto de vida do autor da trilogia é marcado pela sua atuação na extrema esquerda e pelas inúmeras denuncias realizadas a grupos e organizações de cunho neofacistas e racistas. Há aqui uma curiosidade sobre a vida do autor: aos 15 anos, ele presenciou um estupro coletivo, realizado pelos seus colegas. Essa situação marcante e traumática para Larsson resultou na sua preocupação em defender os direitos das mulheres e na sua aliança com a causa feminista. Em suas obras, a temática da violência sexual se faz fortemente presente, através de cenas cruas e duras.
Nos romances da trilogia Millenium, escritos ao longo de alguns anos, o autor retrata as histórias de forma original e envolvente, conduzindo o leitor a reflexões acerca da vida contemporânea, das relações estabelecidas entre os indivíduos, da violência sexual contra as mulheres, dos movimentos nazistas, da volatilidade do mercado financeiro, bem como do uso de poderes nas relações. Nesse sentido, Larsson, pretende chamar atenção a cada letra e sentença construída, a ponto de desencadear uma série de emoções no leitor, uma miscelânea entre mistério e revelação, amor e ódio. Pena que, em decorrência de um enfarte fulminante, o jornalista não pôde desfrutar do sucesso de sua obra, aclamado pelos críticos por sua maestria em prender o leitor do início ao fim.
O filme, baseado na obra de Stieg Larsson, é um reflexo de como uma construção literária pode resultar num longa-metragem aclamado pela crítica internacional. Os Homens que Não Amavam as Mulheres foi dirigido pelo cineasta dinamarquês Niels Arden Oplev, produzido em 2009 e bateu recordes nas bilheterias europeias. O filme contou com um elenco até então pouco conhecido nos longas hollywoodianos, mas que mostrou através da sua história envolvente como reproduzir os mesmos efeitos em uma língua estrangeira.  Há, durante o percurso da trama, ritmo e montagem para que o filme possa funcionar, não somente com ligações entre contextos e diferentes núcleos, mas flashbacks ou insights que pudesse remeter ao espectador um entendimento mais apurado da história, sem perder a curva dramática e o clímax nesse enigma de portas fechadas.
O desenrolar da trama é tecido por três histórias que se cruzam. O filme já começa nos convidando a prestar atenção à sequência de fatos soltos que apontam para um primeiro momento - a crise de credibilidade da Millenium, uma revista conhecida por reportagens de escândalos da alta finança que tinha em sua equipe técnica Mikael Blomkvist. Este impetuoso jornalista, interpretado pelo ator sueco Michael Nyqvist,  realizou uma denúncia contra um poderoso empresário sueco, mas mal sabia ele que sua “boa” ação seria tida por fraudulenta e comprometeria o seu futuro e o da revista. Por esta denúncia, o jornalista é condenado a três meses de reclusão, os quais seriam cumpridos após um semestre em liberdade.  
Diante das acusações e de sua grande exposição à mídia, Mikael se torna alvo de observação de Henrik Vanger (Sven-Bertil Taube), um empresário aposentado que costumava gerir a empresa familiar Vanger Corporation, até desmoronar emocionalmente diante do desaparecimento de sua sobrinha, Harriet Vanger. Impressionado com as informações que Mikael havia obtido sobre o empresário denunciado e sabendo da veracidade desses dados, Henrik contrata uma empresa especializada em investigações para obter informações sobre o jornalista.
Eis que surge, juntamente com a intrigante Lisbeth Salander, a segunda engrenagem do filme - a investigação do desaparecimento de Harriet. Lisbeth é uma talentosa investigadora interpretada pela atriz sueca Noomi Rapace. Uma personagem esquisita,  cheia de mistérios, dona de um passado obscuro e vista por muitos como louca, as vivências e atitudes de Lisbeth proporcionam grandes emoções aos espectadores. Medo, angústia, empatia, raiva, indignação, enfim, são sensações que tocam o âmago daqueles que almejam justiça.
A partir dos dados minuciosamente levantados, Henrik obteve informações suficientes que o levaram a contratar o jornalista, a troco da veracidade das evidências de corrupção do empresário acusado por Mikael, e confiou a ele a missão de finalmente solucionar o mistério do desaparecimento de Harriet. Descobrir o que havia acontecido à sobrinha tinha se tornado sua obsessão por quarenta anos - tempo em que Henrik tentava solucionar esse mistério. Porém, a única pista que tinha (os quadros com as flores que recebia todos os anos em seu aniversário - presente que Harriet costumava dar-lhe) não era suficiente para que algo fosse desvendado. A história do desaparecimento de Harriet é a terceira engrenagem que move a complexa trama.
Sua falta era povoada por cegas especulações e por acusações familiares: o que houve com Harriet? Havia sido assassinada? Quem seria o autor desse crime? Seria ela ou seu assassino responsável pelo envio anual de quadros com flores a Henrik?  O histórico de uma família desarmoniosa e egoísta acaba por envolver cada membro na sombra da dúvida.
Diante de tantos fatos, é possível questionar: afinal, o que está em jogo na trama? Existem inúmeros níveis de análise, mas, em instância geral, o filme leva à reflexão acerca do mote das relações humanas, em que base elas estão sustentadas. E, ainda, se é ético, e para quem, a forma que estas se estabelecem.
É intrigante perceber que o destaque das personagens protagonistas dos três momentos demarcados se faz no uso que delas se é feito. Seja para ratificar uma ideologia nazista, seja por prazer pessoal, seja com fins investigativos. Mas, afinal, se são os interesses que estão em primazia, resta às pessoas a condição de servir de meios para alcançá-los. De acordo com o princípio dos fins kantiano, nas ações em que não tratamos as pessoas ou nós mesmos também como fins em si mesmos, mas só como meios, estamos sendo moralmente incorretos (Menezes, 2006). Com a necessária ressalva de que isso se dissolve caso haja consentimento das partes, porque há a possibilidade de as partes também se beneficiarem da condição em que estão, como através de recompensas que lhe são interessantes (Menezes, 2006). Entre Henrik e Mikael há claramente um interesse mútuo: Henrik deseja que Mikael solucione o desaparecimento de Harriet e Mikael deseja os documentos que incriminam o empresário que outrora denunciára. E, afinal, há algum motivo que nos leve a nos relacionarmos com os outros que não envolva, em última análise, um benefício próprio?
Por outro lado, ao tomarmos a situação de Lisbeth, que, por um momento, se vê forçada a se submeter sexualmente em troca do que seria seu por direito, fica claro que, para seu curador, ela nada mais é que uma possível fonte de afirmação do seu poder e de sua autoridade, o que fica evidente na forma violenta como ele se aproveita da garota para satisfazer-se sexualmente. Para além do princípio dos fins, observa-se que esse caso abarca também o Egoísmo Ético, que justifica a obtenção de prazer do curador, não importando o sofrimento alheio decorrente da prática de abuso sexual (Menezes, 2006).
A partir dos mesmos princípios éticos, viveu Harriet. Vítima de abuso sexual por parte do pai e do irmão, a personagem era também tida como meio para o prazer do outro e, um dia, acaba por matar seu pai. Da mesma forma, Lisbeth, apesar do sofrimento, transforma o seu contexto anterior de submissão e sujeição a partir do momento em que vai à casa de seu curador, causa-lhe sofrimento e deixa-lhe uma marca de forma a, muito provavelmente, impedir que casos como o que vivera se repetissem. Sob a ótica do princípio geral do utilitarismo hedonista, tem-se que a ação moralmente mais correta é aquela que se supõe produzir um maior bem e/ou menor mal para a maioria (Menezes, 2006). Sendo assim, Lisbeth agiu eticamente a partir do momento em que preveniu que outras mulheres sofressem como ela sofreu nas mãos do tutor, embora tenha violentado-o.
Mas, matar, convenhamos, não é convencionalmente entendido como moralmente correto. Inclusive, fingir falsa identidade também não o é, mas Harriet e Lisbeth não deixam de fazê-lo, e isso gera um bem, ora pessoal, ora coletivo. São, por isso, ações moralmente incorretas?
A atual liquidez da vida e da sociedade discutida por Bauman, muito provavelmente, desviaria Kant, se este vivesse nestes tempos modernos, da proposta de um agir ético baseado em ditames gerais. A começar pela denominação de seu princípio, que demarca a centralidade do que é, reforçadamente, “imperativo” e “categórico”. Sem sequer nos determos na proposta da universalização, se vivesse agora, esse filósofo, talvez, se surpreendesse com uma violação já muitas vezes tida por necessária de seu princípio dos fins. São muitos interesses, muitas pretensões, muita insaciedade, para pouco tempo para investimento afetivo e preocupação com o outro; e parece não fazer sentido que, diante da possibilidade de se chegar onde que se quer, seja preciso circular por entre as pessoas e com elas, dificultando os caminhos, quando se é bem mais prático e rápido andar sobre elas (Menezes, 2006).
Mas, para além de um egoísmo, Harriet e Lisbeth passam por momentos singulares e, diante de condições bem próprias, decidem pelas ações que lhes são possíveis. Como habitar uma morada que havia sido corrompida por um pai perverso? Até onde os costumes ditam aquilo que tem que ser feito? Teria Martin outra escolha? Para Foucault, a dimensão ética implica fundamentalmente os humanos em relações reflexivas, e assim sendo, instauram-se aqui relações de cada um consigo mesmo, sendo estas analisadas em quatro aspectos. O primeiro, a substância ética, é caracterizado pela parte de si que é almejada pelos ditames morais, ou seja, o que é de nós esperado frente a uma moral específica. A partir deste requisito compreende-se o segundo aspecto das relações reflexivas que é entendido como modo de assujeitamento do indivído, que se dá a partir do modo com que os indivíduos reconhecem a força desses ditames. O terceiro aspecto vai dizer respeito aos meios acionados para controle dos desejos e transformações desejadas pelo sujeito. Por fim, o quarto aspecto direciona a teologia de todo esse processo reflexivo, que são os ideais normalizadores e norteadores de todos os esforços de transformação, definindo o tipo de homem perseguido nos processos de subjetivação. Vale dizer que estes quatro aspectos não são meros reflexos passivos das experiências humanas: eles, conjuntamente articulados aos códigos, possuem uma eficácia constitutiva, que se traduz na produção de subjetividade. Assim, cabe ao sujeito, a escolha, o reinventar, o movimento para habitar a morada de forma reflexiva, condizente com os códigos e com os preceitos de sua existência. A partir desse posicionamento concebe-se que Martin teria sim outra escolha, que os ensinamentos do seu pai não eram absolutos. Por mais que produzam assujeitamento, todos os costumes e atos são passíveis de reflexão e de produção de novos movimentos e subjetividade capazes de transformar uma vivência negativa em uma retomada com grande estilo - no sentido nietzscheano.  E este é o movimento visto pelas personagens de Harriet e Lizbeth, a quebra de um ciclo para dar possibilidades a outros.
Indo além de ditames e de interesses individuais, e partindo de um ponto de vista utilitarista, nada mais ratificador da moral do que investir numa investigação que é o princípio do fim de uma série de ações preconceituosos, indignos e fatais, praticados contra um número de mulheres que cada vez mais se somava. Sob esse mesmo pretexto, o de resultar em maior bem ou em menor mal, mata-se, deixa-se morrer, utiliza-se de falsa identidade. E não há dúvidas das consequências das ações: desmascara-se o empresário fraudulento e o abusador, cessa-se sofrimentos e é feita justiça. São essas as ações que despertam no telespectador sentimentos de efusividade, frente a morte e ao desvendamento daqueles que oprimiam. São, essas consequências, convencionalmente bem vistas e bem quistas. Mas o que garante que o disparador da ação não fora um sofrimento ou insatisfação eminentemente pessoal, cujo efeito acabou por ultrapassar o esperado? E se o que estava em jogo era, na verdade, um Egoísmo Ético? Os bons resultados ainda se justificam, mesmo se forem “acidentais”? Aqui, o filme nos envolve numa reflexão contrassensual sobre ações individuais que resultam no bem coletivos. E o mais surpreendente é que, nesse contexto, a trama nos envolve a ponto de nos fazer torcer para que ações moralmente incorretas se cumpram, como a morte de alguns (abusadores sexuais), ou que pessoas passem despercebidas com identidades falsas.
Certamente, a discussão desse filme não se esgota aqui, pois existem diversos aspectos singulares que podem ser analisados sob óticas distintas. Vale a pena conferir o filme (e, quem sabe, o livro), sentir o impacto que ele provoca, e permitir-se refletir sobre o que está verdadeiramente em jogo naquela trama, de acordo com a leitura de cada telespectador. E, a partir disso, permitir-se também refletir sobre o que permeia a trama da vida e relações cotidianas, diante da leitura que se faz delas.

  

Referências Bibliográficas

Costa, C. F. Razões para o utilitarismo: uma avaliação comparativa dos pontos de vista éticos. MENEZES, A.(org.): Ética, bioética: diálogos interdisciplinares. Natal: EDUFRN, 2006. (Menezes, 2006)

FIGUEIREDO, Luís Claudio. Foucault e Heidegger. A ética e as formas históricas do habitar. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 7(1-2): 139-149, outubro de 1995.(Figueiredo, 1995)

Menezes, A. B. N. T. Ética e modernidade: a dimensão da autonomia em Michel Foucault. MENEZES, A.(org.): Ética, bioética: diálogos interdisciplinares. Natal: EDUFRN, 2006.(Menezes, 2006)